Provas obtidas por guarda municipal por meio de denúncia anônima são inválidas

31/07/2020 10:14

Por unanimidade, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu que são inválidas as provas obtidas pela guarda municipal em atividade investigativa, iniciada após denúncia anônima, que extrapola a situação de flagrante.

Com base nesse entendimento, os ministros negaram provimento a recurso do Ministério Público que pedia o restabelecimento da sentença que condenou um homem por tráfico de drogas. O MP sustentava a validade das provas obtidas pelos guardas municipais que efetuaram a prisão em flagrante do acusado.

Segundo os autos, após denúncia anônima, os guardas municipais abordaram o réu e, não encontrando entorpecentes com ele, seguiram até um terreno nas proximidades, onde teriam apreendido maconha e filme plástico supostamente utilizado para embalar a droga.

Função de polícia
O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) considerou inválida a apreensão de entorpecentes relatada pela guarda municipal e absolveu o acusado com base no artigo 386, VII, do Código de Processo Penal, sob o argumento de que atividades de investigação e policiamento ostensivo constituem função das Polícias Civil e Militar, conforme o artigo 144, parágrafo 8º, da Constituição Federal.

Ao confirmar o acórdão do TJ-SP, o relator, ministro Nefi Cordeiro, explicou que, no caso em julgamento, as provas são inválidas, pois os guardas municipais exerceram atividade de investigação motivados por denúncia anônima e nada encontraram na busca pessoal.

Para os ministros da 6ª Turma, não há impedimento à prisão em flagrante executada por guardas municipais — ou qualquer outra pessoa —, e as provas decorrentes dessa prisão não seriam ilícitas.

No entanto, segundo o relator, "os guardas municipais desempenharam atividade de investigação, o que, consoante o artigo 144, parágrafo 8º, da Constituição Federal, não lhes compete. Assim, não podem ser consideradas lícitas as provas decorrentes da referida busca", concluiu. Com informações da assessoria de imprensa do Superior Tribunal de Justiça.

Fonte: https://www.conjur.com.br/2020-jul-31/provas-obtidas-guarda-municipal-denuncia-anonima-sao-nulas?utm_source=dlvr.it&utm_medium=twitter

 

Superior Tribunal de Justiça 

RECURSO ESPECIAL Nº 1.854.065 - SP (2019/0377094-5)

 RELATOR : MINISTRO NEFI CORDEIRO RECORRENTE : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO RECORRIDO : DANILO DUARTE DANTAS ADVOGADOS : DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO LUIZ ANTONIO FELIPE FRANCHITO - DEFENSOR PÚBLICO - SP308521 

RELATÓRIO O EXMO. SR. MINISTRO NEFI CORDEIRO (Relator): 

Trata-se de recurso especial interposto em face de acórdão que deu provimento ao apelo defensivo, assim ementado: Tráfico - Prisão do réu e apreensão de drogas por guardas municipais - Ausência de flagrante - Não incidência do art. 301 do CPP - Exorbitância dos poderes atribuídos no art. 144, § 8 o , da CF - Prova ilícita - Absolvição. Sustenta o Ministério Público violação dos arts. 301 e 303, ambos do Código Penal, além de divergência jurisprudencial. Aduz que são válidas as provas obtidas por guardas municipais que efetuam prisão em flagrante de agente que está praticando o crime permanente de tráfico de drogas. Requer assim o provimento do recurso, a fim de que seja cassado o acórdão recorrido, restabelecendo-se a sentença condenatória. Contra-arrazoado e admitido na origem, manifestou-se o Ministério Público Federal pelo provimento do recurso. 

É o relatório. Documento: 1949060 - 

Inteiro Teor do Acórdão - Site certificado - DJe: 08/06/2020 Página 3 de 4 Superior Tribunal de Justiça RECURSO ESPECIAL Nº 1.854.065 - SP (2019/0377094-5) 

VOTO O EXMO. SR. MINISTRO NEFI CORDEIRO (Relator): Consoante relatado, busca o Ministério Público o restabelecimento da sentença que condenou o recorrido pela prática do delito de tráfico de drogas, aduzindo a validade das provas obtidas por guardas municipais que efetuam prisão em flagrante de agente. O Tribunal de origem, por maioria de votos, considerou inválida a apreensão de entorpecentes realizada e absolveu o condenado com base no art. 386, VII, do CPP, assim decidindo (fls. 262/266): Não se ignora que, nos termos do art. 301 do Código de Processo de Penal, qualquer do povo está autorizado a realizar prisão em flagrante. Diversa, todavia, a situação em exame, típica de atividade investigatória. Conforme admitiram os guardas, só apreenderam o tóxico porque deliberaram apurar denúncia anônima. Encontraram o apelante sentado em escada, distante do local de apreensão do tóxico. Nada levava de ilícito. Ainda assim, se deslocaram para o imóvel noticiado, onde recolheram porções de maconha em quintal de casa com aspecto de abandonada, em meio a matagal e lixo. Ora, o art. 144, § 8º, da Constituição Federal atribui aos guardas municipais a proteção dos bens, serviços e instalações municipais. Atividades de investigação e policiamento ostensivo, conforme expresso nos demais parágrafos do mesmo artigo, constituem função das polícias civil e militar. No caso, portanto, ao receber notícias de tráfico, competia aos guardas acionar os referidos órgãos policiais. Não havia qualquer motivo para que, em vez disso, tomassem a iniciativa da abordagem e apreensão de drogas. Nem se diga que, regulamentando a norma constitucional, a Lei 13.022/14 prevê como "competências específicas das guardas municipais, respeitadas as competências dos órgãos federais e estaduais", "colaborar, de forma integrada com os órgãos de segurança pública, em ações conjuntas que contribuam com a paz social", "encaminhar ao delegado de polícia, diante de flagrante delito, o autor da infração, preservando o local do crime, quando possível e sempre que necessário" (art. 5 o , IV e XIV). Parece claro que tais disposições não autorizam a guarda municipal a efetuar diligências para apurar suspeitas de mercancia ilícita, permanecendo tais atividades privativas da polícia. Cumpre ainda observar que a Lei 13.022/14 é objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 5156, em que se questiona a possibilidade de atribuir às guardas municipais funções de segurança pública. E, em seu parecer, o Procurador-geral da República opina que "não compete a guarda municipal o exercício, direto ou indireto, de atividades próprias à segurança (...). As guardas só podem existir se destinadas à proteção de bens, serviços e instalações do Município. Não lhes cabem, portanto, os serviços de polícia ostensiva, de preservação da ordem pública, de polícia judiciária e de apuração das infrações penais. Aliás, essas competências foram essencialmente atribuídas à Polícia Militar e à Policia Civil, consoante prescrevem os §§ 4 o e 5 o , do susotranscrito art. 144 da Carta Federal". Documento: 1949060 - Inteiro Teor do Acórdão - Site certificado - DJe: 08/06/2020 Página 4 de 4 Superior Tribunal de Justiça [...] Interposto recurso extraordinário, ainda pendente de julgamento de mérito, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a repercussão geral do tema. Na decisão, anote-se, o relator se manifestou pela interpretação estrita das atribuições constitucionalmente fixadas para a guarda civil: "a controvérsia contida nos autos gira em torno de objeto mais amplo, e que esta Corte não se manifestou. Trata-se de saber o preciso alcance do art. 144, § 8 o , da Lei Fundamental, segundo o qual os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei. Em uma primeira guinada de visão, a reserva de lei prevista no dispositivo se afigura demasiado abrangente. Todavia, tal elastério hermenêutico em nada se coaduna com o sistema constitucional de repartição de competências, o que impõe ao intérprete a sua delimitação. Noutros termos, é preciso que esta Corte defina parâmetros objetivos e seguros que possam nortear o legislador local quando da edição das competências de suas Guardas Municipais. Com efeito, não raro o legislador local, ao argumento de disciplinar a forma de proteção de seus bens, serviços e instalações, exorbita de seus limites constitucionais, ex vi do art. 30, I, da Lei Maior, usurpando competência residual do Estado (e.g., segurança pública)" (RE 608.588/SP, Rel. Min. Luiz Fux, j. em 23.05.2013) [...] Recentemente, em situação análoga à dos autos, este E. Tribunal decidiu pela "impossibilidade de se validar a ação policial e, por conseqüência, a ação penal, por cuidar-se de prova ilegal. Com efeito, a Guarda Municipal não possui poderes constitucionais para efetuar diligências. Sua função não é de policiamento ostensivo. Em razão da Constituição de 1988, todos os entendimentos jurisprudenciais e a legislação que não se coadunem com a norma maior perderam sua validade. Enquanto não ocorrer alteração dos dispositivos acima transcritos, fica rejeitada a validade da ação de Guarda Municipal que, em ação de policiamento ostensivo, efetua diligências para efetuar prisão de eventual roubador (...). Poder-se-ia argumentar que cuida-se de prisão em flagrante e que, portanto, qualquer pessoa poderia efetuá-la. Com efeito, assim se tem decidido. No entanto, neste caso, não se observou esta regra. Os guardas municipais, realizando ato de polícia judiciária, foram fazer investigação. Não se trata, de prisão de pessoa que estava praticando crime, mas foi ela decorrente de diligência, o que não se pode tolerar em razão do que determina a Constituição. Em face do exposto, creio que a prova é contaminada pela ilegalidade e, assim, a ação penal não pode ser reconhecida como válida, devendo, desta forma, ser o acusado absolvido. Observo que a Lei 13.022, de 08 de agosto de 2014, ao conferir o poder de polícia à guarda civil municipal, reafirmou a ilegalidade da ação de policiamento ostensivo por aqueles servidores civis em fatos anteriores à sua vigência, não sendo aplicável ao caso presente, pois os fatos são pretéritos (Apelação n° 3005009-21.2013.8.26.0038, 2 a Câmara de Direito Criminal, Rel. Des. Almeida Sampaio, j. em 07.03.2016). Sob o mesmo fundamento, o 6 a Grupo de Direito Criminal deste Tribunal depois também absolveu condenado por posse de droga para fins de tráfico (Revisão Criminal n° 0034551-84.2015.8.26.0000, j. em 07.07.2017). Nesse cenário, forçoso reconhecer que, jungidos à legalidade estrita, que só permite ao agente público fazer o que estiver expressamente previsto em lei, os guardas municipais não estavam autorizados a abordar o réu, tampouco seguir até imóvel noticiado e proceder revista no local, mormente Documento: 1949060 - Inteiro Teor do Acórdão - Site certificado - DJe: 08/06/2020 Página 5 de 4 Superior Tribunal de Justiça se considerado que não observada ação típica de mercancia ilícita e nada se encontrou de ilícito com o apelante. Logo, inválida a apreensão dos entorpecentes, não pode subsistir a condenação por tráfico. A hipótese não é de anulação, já que ilícitos os elementos de convicção colhidos, inexistindo outros a embasar a inculpação. Frente ao exposto, dá-se provimento ao recurso de Danilo Duarte Dantas para absolvê-lo com fulcro no art. 386, VII, do Código de Processo Penal, prejudicado o exame da preliminar suscitada. Expeça-se alvará de soltura clausulado em seu favor. É certo que esta Corte entende que inexiste qualquer óbice à realização de prisão, em situação de flagrância, por guardas municipais ou qualquer outra pessoa, não havendo falar, em tais casos, em ilicitude das provas daí decorrentes. A propósito: PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. NÃO CABIMENTO. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. CONDENAÇÃO CONFIRMADA PELO TRIBUNAL A QUO. PLEITO DE ABSOLVIÇÃO. IMPROPRIEDADE DA VIA ELEITA. ALEGAÇÃO DE PROVA ILÍCITA. CONDUTA FLAGRADA POR GUARDAS MUNICIPAIS. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO. WRIT NÃO CONHECIDO. 1. Esta Corte e o Supremo Tribunal Federal pacificaram orientação no sentido de que não cabe habeas corpus substitutivo do recurso legalmente previsto para a hipótese, impondo-se o não conhecimento da impetração, salvo quando constatada a existência de flagrante ilegalidade no ato judicial impugnado. 2. Se o Tribunal de origem, mediante valoração do acervo probatório produzido nos autos, concluiu, de forma fundamentada, não só pela materialidade do delito, mas também por ser o réu autor do crime descrito na exordial acusatória, não cabe a esta Corte a análise das afirmações relacionadas ao pleito de absolvição, na medida em que demandaria exame detido de provas, inviável em sede de writ. 3. O reconhecimento de nulidades no curso do processo penal reclama uma efetiva demonstração do prejuízo à parte, sem a qual prevalecerá o princípio da instrumentalidade das formas positivado pelo art. 563 do CPP (pas de nullité sans grief). 4. Firme o entendimento jurisprudencial deste Superior Tribunal de Justiça no sentido de que: "Nos termos do artigo 301 do Código de Processo Penal, qualquer pessoa pode prender quem esteja em flagrante delito, razão pela qual não há qualquer óbice à sua realização por guardas municipais. Precedentes." (HC 357.725/SP, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, DJe 12/5/2017). 5. Habeas corpus não conhecido. (HC 332.635/SP, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 27/06/2017, DJe 01/08/2017.) Consoante se extrai da denúncia do presente feito, a situação dos autos, contudo, difere da hipótese em que não se vislumbra ilegalidade no flagrante realizado por guardas municipais. Confira-se a narrativa da denúncia acerca dos fatos (fls. 86/89): Segundo se apurou, no dia dos fatos, guardas civis receberam denúncia anônima dando conta que: "na rua Vitória Régia, próximo ao numeral 26, uma pessoa de blusa azul e bermuda colorida, pele branca, estaria na prática de tráfico de Documento: 1949060 - Inteiro Teor do Acórdão - Site certificado - DJe: 08/06/2020 Página 6 de 4 Superior Tribunal de Justiça drogas, e essa ficaria escondida no terreno do imóvel". Assim, dirigiram-se ao local e lograram identificar o denunciado como a pessoa delatada, pois tinhas as características descritas na denúncia, o qual estava sentado na escada do imóvel localizado no número 272. Em revista pessoal, nada de ilícito foi encontrado. Ao lado do denunciado, foi encontrada uma faca com resquícios de entorpecente. Em buscas no terreno localizado há três metros do denunciado, os guardas apreenderam 128 porções de "maconha" escondidas entre "sujeiras e mato", além de 13 eppendorfs vazios. No interior do imóvel, apreenderam a quantia de R$ 10,00, em espécie e um rolo de filme plástico utilizado para embalar as porções de droga, além do documento referente à execução criminal n Q 856.849, em nome do denunciado. Diante da confirmação da denúncia anônima, local e circunstâncias da prisão, apreensão de porções individualizadas para venda e aparatos utilizados no fracionamento e embalagem do entorpecente, infere-se que a droga apreendida destinava-se à mercancia ilícita ou entrega de qualquer forma a consumo de terceiras pessoas. Portanto, diante de denúncia anônima, guardas municipais abordaram o recorrido e, não encontrando entorpecentes, seguiram até terreno localizado nas proximidades, onde, então, apreenderam maconha, R$ 10,00, filme plástico utilizado para embalar droga e documento relativo à execução criminal em desfavor do condenado. Em síntese, agiram motivados por denúncia anônima e nada encontraram na busca pessoal. Observa-se que, no caso, os guardas municipais desempenharam atividade de investigação, o que, consoante art. 144, § 8º, da CF, não lhes compete. Assim, não podem ser consideradas lícitas as provas decorrentes da referida busca. Nesse sentido, mutatis mutandis: [...] TRÁFICO DE DROGAS (ARTIGO 33 DA LEI 11.343/2006). NULIDADE DA AÇÃO PENAL. FLAGRANTE EFETUADO COM BASE EM DENÚNCIA ANÔNIMA. INEXISTÊNCIA DE DOCUMENTAÇÃO COMPROBATÓRIA. AUSÊNCIA DE ATRIBUIÇÃO À GUARDA MUNICIPAL PARA REALIZAR A PRISÃO EM FLAGRANTE. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. 1. Da leitura do auto de prisão em flagrante, verifica-se que guardas municipais realizavam patrulhamento de rotina quando avistaram o paciente, que estava enterrando algo em um amontoado de pedriscos, ocasião em que o abordaram e verificaram que se tratava de uma sacola plástica contendo drogas em tipos e quantidades variadas, razão pela qual o prenderam em flagrante delito. 2. Inexiste nos autos qualquer indício de que a abordagem e a prisão do paciente teria decorrido de uma denúncia anônima, tampouco que os guardas municipais teriam agido com abuso de autoridade, pois teriam ficado de campana por um tempo, a despeito de não possuírem competência para realizar investigação criminal, afirmações que se encontram isoladas na impetração. Documento: 1949060 - Inteiro Teor do Acórdão - Site certificado - DJe: 08/06/2020 Página 7 de 4 Superior Tribunal de Justiça 3. O rito do habeas corpus pressupõe prova pré-constituída do direito alegado, devendo a parte demonstrar, de maneira inequívoca, por meio de documentos que evidenciem a pretensão aduzida, a existência do aventado constrangimento ilegal suportado pelo paciente, ônus do qual não se desincumbiu a defesa. 4. Ademais, nos termos do artigo 301 do Código de Processo Penal, qualquer pessoa pode prender quem esteja em flagrante delito, razão pela qual não há qualquer óbice à realização do referido procedimento por guardas municipais. Precedentes. [...] 3. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício para revogar a custódia preventiva do acusado, mediante a imposição das medidas alternativas à prisão previstas no artigo 319, incisos I, IV e V, do Código de Processo Penal. (HC 288.077/SP, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 10/06/2014, DJe 18/06/2014.) Ante o exposto, nego provimento ao recurso especial.