Prisão em flagrante/Princípio da Insignificância

04/05/2011 15:08

 

 

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Prisão em flagrante pode ser substituída

Ver autoresPor Audrey Molina Banzi e Francisco Sannini Neto

O objetivo deste artigo é analisar a importância do princípio da
insignificância no momento da prisão em flagrante. Como é cediço, o referido
princípio ganhou e tem ganhado cada vez mais força dentro do nosso
ordenamento jurídico.

Todavia, sua aplicação na prática ainda é tema de várias polêmicas,
principalmente por não haver um dispositivo legal tratando de maneira clara
sobre o assunto.

Sendo assim, este trabalho tem como foco principal aclarar algumas dúvidas
que envolvem esse famigerado princípio e defender a sua aplicação pelos
operadores do Direito, em especial pelos Delegados de Polícia no momento da
lavratura do auto de prisão em flagrante delito.

Conceito de Crime e Teoria da Tipicidade Conglobante
O conceito de crime é de fundamental importância para a compreensão de
diversos institutos do Direito Penal, sendo certo que para se entender e se
aplicar o princípio da insignificância, é imprescindível que se tenha bem em
mente o que pode ser considerado como um fato criminoso.

Em estreita síntese, a doutrina majoritária se divide, ao conceituar o
crime, em duas correntes: teoria bipartida e teoria tripartida.

Qualquer estudante de Direito, ainda que iniciante, sabe definir o crime
como sendo um fato típico, ilícito e culpável. Esse é o conceito adotado
pela teoria tripartida do crime
<https://www.conjur.com.br/2010-mar-29/aplicacao-insignificancia-substi...
isao-flagrante?imprimir=1#_ftn1_7912> [1]. Por outro lado, a teoria
bipartida entende o crime como sendo um fato típico e ilícito, sendo a
culpabilidade apenas um pressuposto para a aplicação da pena
<https://www.conjur.com.br/2010-mar-29/aplicacao-insignificancia-substi...
isao-flagrante?imprimir=1#_ftn2_7912> [2].

Para os seguidores da primeira corrente, por exemplo, o menor de dezoito
anos (criança e adolescente) não pode praticar crime, vez que é considerado
inimputável, o que acaba por excluir a culpabilidade e, conseqüentemente, o
crime. Por outro lado, para os seguidores da teoria bipartida, o menor de
idade comete crime, pois o fato é típico e ilícito, mas não poderá ser
penalizado, já que não está presente o requisito da culpabilidade, que, de
acordo com a teoria em questão, é pressuposto para a aplicação da pena e não
requisito do crime.

Nesse ponto, devemos destacar que, seja qual for a teoria adotada, o fato
típico, primeiro elemento do crime, deve ser analisado para que se possa
constatar a ocorrência de uma infração penal. Caso se configure a existência
de um fato típico, passa-se posteriormente a análise da ilicitude da
conduta. Caso contrário, se verificada a ausência de tipicidade da conduta,
o fato não poderá ser acoimado de criminoso, dispensando-se, de pronto, a
análise da ilicitude.

Por força do princípio da legalidade, quando o legislador optar por proibir
ou impor determinadas condutas sob a ameaça de uma sanção penal, ele deve
valer-se de uma lei. É por meio da lei que o Estado consegue traçar as
condutas que devem ser seguidas pelos cidadãos.

O professor Argentino Eugenio Raúl Zaffaroni ensina que “o tipo penal é um
instrumento legal, logicamente necessário e de natureza predominantemente
descritiva, que tem por função a individualização de condutas humanas
penalmente relevantes.”
<https://www.conjur.com.br/2010-mar-29/aplicacao-insignificancia-substi...
isao-flagrante?imprimir=1#_ftn3_7912> [3]

Nessa mesma linha, o doutrinador argentino desenvolveu uma nova teoria do
tipo penal que vem ganhando muitos adeptos no Direito brasileiro. Trata-se
da teoria da tipicidade conglobante.

Como é cediço, o fato típico é composto pela conduta do agente, pelo
resultado advindo dessa conduta, bem como pelo nexo de causalidade existente
entre a conduta e o resultado. Ademais, para que o fato seja típico, também
é indispensável que essa conduta se amolde a um tipo abstratamente descrito
em uma lei, o que denominamos de tipicidade (tipicidade = subsunção do fato
ao tipo previsto em lei).

Rogério Greco, ao explicar a teoria desenvolvida por Zaffaroni, defende que
a tipicidade penal se divide em tipicidade formal e tipicidade conglobante
<https://www.conjur.com.br/2010-mar-29/aplicacao-insignificancia-substi...
isao-flagrante?imprimir=1#_ftn4_7912> [4]. Para ele, a tipicidade formal
seria a mera subsunção da conduta do agente a um fato abstratamente descrito
em uma lei penal.

Contudo, para que o fato seja típico, não bastaria a constatação da
tipicidade formal ou legal, sendo indispensável a constatação da tipicidade
conglobante que, por sua vez, é composta da tipicidade material e da
antinormatividade.

De acordo com a teoria, o conceito de antinormatividade se extrai do fato de
que uma conduta que é fomentada ou imposta por uma norma não pode ser
proibida por outra. Sendo assim, o fato típico deve ser analisado de uma
maneira conglobada com todo o ordenamento jurídico, sendo considerado
antinormativo apenas quando não estiver amparado por qualquer outra norma
legal.

Por fim, para concluirmos pela tipicidade penal, é necessária a análise da
tipicidade material, que também compõe o conceito de tipicidade conglobante.
Assim, podemos verificar a presença da tipicidade material naquelas condutas
consideradas mais graves pelo Direito e que ferem os bens jurídicos mais
importantes.

O Direito Penal tem por finalidade a proteção dos bens tidos como mais
importantes dentro de uma sociedade, sendo que o princípio da intervenção
mínima assevera que nem todo bem é passível de proteção por parte do Estado,
assim como nem toda lesão a um bem jurídico é significante a ponto de
merecer a repressão penal. Em síntese, a tipicidade material defende que
apenas as lesões mais graves aos bens jurídicos mais importantes é que
merecem a proteção do Direito Penal.

Para concluir, Rogério Greco resume: “para que se possa falar em tipicidade
penal é preciso haver a fusão da tipicidade formal ou legal com a tipicidade
conglobante (que é formada pela antinormatividade e pela tipicidade
material). Só assim o fato poderá ser considerado penalmente típico.”
<https://www.conjur.com.br/2010-mar-29/aplicacao-insignificancia-substi...
isao-flagrante?imprimir=1#_ftn5_7912> [5]Devemos destacar que o estudo do
princípio da insignificância reside justamente nesta segunda parte da
tipicidade conglobante, qual seja, a chamada tipicidade material.

Princípio da Insignificância
Após a análise do conceito de crime de acordo com a teoria da tipicidade
conglobante, passamos agora a dar enfoque ao princípio da insignificância,
objeto principal deste trabalho.

O princípio da insignificância foi fixado por Claus Roxin e defende a idéia
de que mínimas ofensas aos bens jurídicos não merecem a intervenção do
Direito Penal; este se mostra como desproporcional à lesão efetivamente
causada.

Luiz Flávio Gomes nos dá o conceito de crime insignificante: “infração
bagatelar ou delito de bagatela ou crime insignificante, expressa o fato de
ninharia, de pouca relevância. Em outras palavras, é uma conduta ou um
ataque ao bem jurídico tão irrelevante que não requer a (ou não necessita
da) intervenção penal. Resulta desproporcional a intervenção penal nesse
caso. O fato insignificante, destarte, deve ficar reservado para outras
áreas do Direito (civil, administrativo, trabalhista etc.).”
<https://www.conjur.com.br/2010-mar-29/aplicacao-insignificancia-substi...
isao-flagrante?imprimir=1#_ftn6_7912> [6]

Assim, certo de que o princípio da insignificância só demanda a força
repressora do Direito Penal naquelas lesões mais graves aos bens jurídicos
mais importantes, não podemos falar em crime quando se tratar de infrações
de bagatela, pois, nesses casos, não é possível se constatar a presença da
tipicidade material, essencial para o conceito moderno de crime.

O princípio da insignificância sempre encontrou certa resistência na sua
aplicação em virtude de não haver uma lei tratando do assunto ou uma
jurisprudência formada sobre os requisitos para a sua incidência. Contudo,
depois de diversos julgados, o STF entendeu pela necessidade dos seguintes
vetores para a sua aplicação: ausência de periculosidade social da ação;
mínima ofensividade da conduta do agente; inexpressividade da lesão jurídica
causada; e a falta de reprovabilidade da conduta.

Ademais, devemos salientar que os critérios desenvolvidos pelo STF indicam a
incidência do princípio em estudo ora quando se constatar o puro desvalor da
ação (por exemplo, jogar um pedaço de papel amassado contra um ônibus não
configura o crime previsto no artigo 264 do CP – arremesso de projétil), ora
quando se verificar o puro desvalor do resultado (por exemplo, furto de um
tomate), ou ainda na combinação de ambos (exemplo: acidente de trânsito com
culpa levíssima e resultado totalmente insignificante).

Assim, diante do exposto, defendemos com veemência a aplicação do princípio
da insignificância pelos operadores do Direito, inclusive pelo Delegado de
Polícia no momento da análise da prisão em flagrante delito.

Infração Bagatelar Própria e Infração Bagatelar Imprópria
A doutrina divide o crime de bagatela em duas espécies: infração bagatelar
própria e imprópria.
<https://www.conjur.com.br/2010-mar-29/aplicacao-insignificancia-substi...
isao-flagrante?imprimir=1#_ftn7_7912> [7] A primeira é aquela que já nasce
sem qualquer relevância penal, uma vez que não houve um desvalor na ação, no
resultado ou na combinação de ambos. Já a infração bagatelar imprópria nasce
relevante para o Direito Penal (pois há relevância da conduta ou do
resultado), mas ao longo do processo se verifica que a aplicação de qualquer
pena no caso concreto apresenta-se totalmente desnecessária.

Em outras palavras, na infração bagatelar própria, o fato é irrelevante
desde sua origem e, sendo assim, não há crime, pois o fato totalmente
irrelevante não merece a repressão do Direito Penal, principalmente devido à
ausência da tipicidade material que acaba por excluir o crime, conforme
mencionamos anteriormente.

Já na infração bagatelar imprópria, o fato nasce relevante, ou seja, há
crime, mas, ao longo do processo, a aplicação de uma pena se mostra
totalmente desnecessária.

Neste ponto, é mister que entendamos a diferença entre o princípio da
insignificância e o princípio da irrelevância penal do fato. O primeiro se
aplica em todos os casos que se constatar que houve uma infração bagatelar
própria. Nesses casos, o corolário natural do fato é a exclusão da
tipicidade penal, mais especificamente a tipicidade material. Não há crime,
pois o fato é atípico.

Por outro lado, o princípio da irrelevância penal do fato está ligado à
infração bagatelar imprópria. Aqui, há um desvalor da conduta ou do
resultado. O fato é, em princípio, penalmente punível. O processo deve ser
instaurado contra o agente, mas tendo em vista as circunstâncias do caso
concreto, a pena pode se tornar totalmente desnecessária, como no caso do
perdão judicial concedido pelo juiz. Ademais, vale ressaltar que o
fundamento para tanto se encontra no artigo 59 do CP.

Luiz Flavio Gomes sintetiza com precisão: “infração bagatelar própria =
princípio da insignificância; infração bagatelar imprópria = princípio da
irrelevância penal do fato. Não há como se confundir a infração bagatelar
própria (que constitui fato atípico – falta de tipicidade material) com a
infração bagatelar imprópria (que nasce relevante para o Direito Penal). A
primeira é puramente objetiva. Para a segunda, importam os dados do fato
assim como uma certa subjetivação, porque também são relevantes para ela o
autor, seus antecedentes, sua personalidade etc.”
<https://www.conjur.com.br/2010-mar-29/aplicacao-insignificancia-substi...
isao-flagrante?imprimir=1#_ftn8_7912> [8]

Prisão em Flagrante e o Princípio da Insignificância
Frente ao exposto até aqui, restou claro que o princípio da insignificância
possui enorme importância dentro do nosso ordenamento jurídico. Da mesma
forma, não restam dúvidas que o referido princípio não deve ser esquecido
pelos operadores do Direito, o que inclui a figura do Delegado de Polícia.

Assim, certo de que a Autoridade Policial deve atuar como um garantidor dos
direitos fundamentais dos cidadãos, impedindo que inocentes tenham o seu
direito a liberdade de locomoção restringido, o princípio da insignificância
deve ser observado no momento da formalização da prisão em flagrante.

Cabe ao Delegado de Polícia, como operador do Direito, analisar o caso
concreto e verificar a legalidade da prisão e se esta deve subsistir.
Conforme defendemos em outro trabalho, “O Delegado de Polícia é aquele que
tem o primeiro contato com o crime e que, portanto, apresenta as melhores
condições para efetivar a investigação. Temos de enxergar a figura da
autoridade policial como a de um juiz da fase pré-processual. O Delegado é
um sujeito imparcial e que deve atuar como um garantidor dos direitos
fundamentais dos sujeitos passivos da investigação”.
<https://www.conjur.com.br/2010-mar-29/aplicacao-insignificancia-substi...
isao-flagrante?imprimir=1#_ftn9_7912> [9]

Ademais, vale lembrar que o Delegado de Polícia possui discricionariedade na
formação do seu convencimento jurídico, o que reforça o entendimento de que
é possível a aplicação do princípio da insignificância para justificar a não
lavratura do auto de prisão em flagrante delito.

Nesse diapasão, é a lição de Roger Spode Brutti: “As Autoridades Policiais,
por suposto, constituem-se agentes públicos com labor direto frente à
liberdade do indivíduo. É da essência das suas decisões, por isso, conterem
inseparável discricionariedade, sob pena de cometerem-se os maiores abusos
possíveis, quais sejam, aqueles baseados na letra fria da Lei, ausentes de
qualquer interpretação mais acurada, separadas da lógica e do bom senso.”
<https://www.conjur.com.br/2010-mar-29/aplicacao-insignificancia-substi...
isao-flagrante?imprimir=1#_ftn10_7912> [10]

Dessa forma, uma vez que a infração bagatelar própria está diretamente
ligada ao princípio da insignificância e que este, por sua vez, exclui a
tipicidade material da conduta, não é possível que se fale em crime nesses
casos. O fato é atípico.

Assim, se não há crime, não há que se falar em prisão em flagrante. Já está
mais do que na hora de o Delegado de Polícia assumir a sua função de
operador do Direito. Trata-se de uma carreira jurídica, que deveria,
inclusive, ser reconhecida em nível constitucional. Sendo assim, cabe a
Autoridade Policial formar o seu convencimento jurídico de maneira
discricionária, aplicando o princípio da insignificância para justificar a
não lavratura do auto de prisão em flagrante.

De maneira ilustrativa, imaginemos o exemplo de uma mulher que foi autuada
em flagrante pela Polícia Militar devido ao furto de um xampu em um
supermercado. Tal conduta já nasce insignificante (infração bagatelar
própria), pois não há o desvalor do resultado. O bem jurídico protegido,
qual seja, o patrimônio do dono do supermercado não foi lesado de maneira
significativa a ponto de merecer a repressão do Direito Penal.

É desproporcional mandar ao cárcere uma mulher que nunca apresentou qualquer
risco a sociedade, somente pelo furto de um xampu. As conseqüências da
punição não são proporcionais ao mal causado pela sua conduta, o que fere
inclusive o princípio da dignidade da pessoa humana.

Desse modo, cabe ao Delegado de Polícia não ratificar a voz de prisão dada
anteriormente pelo Policial Militar e zelar pelo direito fundamental a
liberdade daquela mulher, deixando, assim, de lavrar o auto de prisão em
flagrante devido à ausência de tipicidade material, o que exclui o crime.

Sem embargo, a mulher do nosso exemplo não poderá ficar impune. Todavia, a
sua punição deve ficar a cargo dos outros ramos do Direito, como o Direito
Civil, por exemplo.

Em conclusão, defendemos que cabe ao Delegado de Polícia, como operador do
Direito, ao fazer uso de seu poder discricionário na formação do seu
convencimento jurídico, analisar a possibilidade de efetuar ou não o
flagrante em casos que estejam abarcados pelo princípio da insignificância.
Agindo assim, a Autoridade Policial estará zelando pelos direitos
fundamentais dos envolvidos e preservando o princípio da dignidade da pessoa
humana, fundamento maior da nossa Constituição.

Bibliografia
BRUTTI, Roger Spode. O princípio da insignificância frente ao poder
discricionário do Delegado de Polícia. Disponível em
<https://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9145>
https://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9145 ;

GOMES, Luiz Flávio. Princípio da Insignificância e outras excludentes de
tipicidade. Volume 1. Ed. Revista dos Tribunais. 2009;

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral. 9ª Edição. Vol.1. Ed.
Impetus.2007;

JESUS, Damásio E. Direito Penal – Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 1994.

NETO, Francisco Sannini. A Importância do Inquérito Policial para um Estado
Democrático de Direito. Artigo disponível em
<https://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=12998>
https://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=12998 ;

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de derecho penal – Parte general. Buenos
Aires: Ediar, 1996.

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<https://www.conjur.com.br/2010-mar-29/aplicacao-insignificancia-substi...
isao-flagrante?imprimir=1#_ftnref1_7912> [1] Adotam essa teoria, entre
outros, Nélson Hungria, Francisco de Assis Toledo e Cezar Roberto
Bitencourt.