O delegado de polícia e a liberdade provisória com fiança

Leonardo de Souza Simonato

Elaborado em 07/2011.

Com o advento da Lei 12.403/2011 o dever-poder do Delegado de Polícia de arbitrar fiança se estendeu a todos os crimes cuja pena máxima privativa de liberdade – detenção, reclusão e prisão simples – não exceda a 4 anos, ressalvadas as exceções legais, a teor do art. 322, caput, do Código de Processo Penal, verbis:

Art. 322. A autoridade policial somente poderá conceder fiança nos casos de infração cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a 4 (quatro) anos.

Pois bem. Se assim o é, forçoso indagar, de logo, se para fins de concessão ou não da liberdade provisória com fiança deve o Delegado de Polícia considerar, no momento da lavratura do auto de prisão em flagrante, por óbvio, as hipóteses de concurso de crimes, em especial o concurso formal e material, bem como as demais causas de aumento ou diminuição da pena (v.g., tentativa).

A quase totalidade dos doutrinadores já se manifestou sobre os vários aspectos inovadores e controvertidos da novel legislação, no entanto, passaram ao largo da vexata quaestio ora proposta.

A isso se pode creditar apenas e tão somente a intenção de incursionarem, os doutrinadores, nas situações do cotidiano forense-processual, ou, infelizmente, a falta de atenção para as questões de natureza jurídico-policiais, as quais inexoravelmente atingem os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos – em especial à liberdade e à propriedade –, e, necessariamente, deságuam no Judiciário.

Não raras vezes, antes mesmo da entrada em vigor da Lei 12.403/2011, vozes ecoavam na defesa da tese segundo a qual ao Delegado de Polícia era dever apenas valorar o fato-bruto apresentado quanto ao aspecto da tipicidade, não lhe sendo autorizado, porque desarrazoado, a se imiscuir nas circunstâncias que pudessem de alguma forma majorar ou atenuar a pena ao argumento de que essa atividade era típica do juiz.

Ledo engano. Com a devida venia, o equívoco é manifesto, pois não se pode confundir, embora semelhantes, pena cominada e pena aplicada. Ao propósito, na cominação há mera previsão abstrata da pena pela lei. Na aplicação, ao inverso, existe fixação concreta da pena ao réu. Por outras palavras, enquanto a cominação constitui apenas uma sanção, situando-se no plano abstrato, a aplicação traduz-se numa coação, isto é, na imposição da sanção, essa sim fixada na sentença, só pelo juiz, em quantidade certa e com observância dos requisitos legais, cujos pressupostos são a tipicidade, a ilicitude e a culpabilidade. [01]

Por outro lado, a previsão abstrata é utilizada para definir, v. g., o procedimento comum a ser seguido durante a instrução criminal – ordinário, sumário ou comum. Nesse limiar o juiz não faz um prognóstico da pena aplicada para definir o procedimento correto. Não. O que determina o procedimento é a pena prevista abstratamente, ainda que adiante, na sentença, se aplique pena inferior ao limite estabelecido para fixá-lo.

No que tange à concessão da liberdade provisória com fiança, mesmo antes da entrada em vigor da Lei 12.403/2011 as penas já eram analisadas em abstrato, consoante o antigo enunciado sumular 81 do Superior Tribunal de Justiça, embora pudesse o Código Penal, ao tratar do concurso de crimes, levar o intérprete ao equívoco de considerá-las concretamente, posto que em todas as modalidades fez o uso das expressões "aplicam-se" e "aplica-se-lhes" as penas:

Súmula 81, do STJ. Não se concede fiança quando, em concurso material, a soma das penas mínimas cominadas for superior a dois anos de reclusão. (grifo nosso)

A essência desse verbete, agora, provavelmente será transportada para o âmbito policial, mutatis mutandis, já que o texto deve ser compreendido em cada momento e em cada situação concreta de maneira nova e distinta. A mobilidade histórica da compreensão, relegada a segundo plano pela hermenêutica, representa verdadeiro centro de uma hermenêutica adequada à consciência histórica (o intérprete tem de apreender a tensão natural entre o momento da construção do texto – o passado – e o momento da construção da norma – o presente – e, assim, enfrentar a mobilidade da situação concreta à qual se há de aplicar essa norma). [02]

É nesse diapasão e como argumento de reforço que importa consignar as ementas sumulares 723, 243 e 82, do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, respectivamente, os quais disciplinam a aplicação dos institutos despenalizadores da Lei 9.099/95 e podem, com a devida cautela, ser utilizados para a interpretação do entendimento ora exposto:

Súmula 723, do STF: Não se admite a suspensão condicional do processo por crime continuado, se a soma da pena mínima da infração mais grave com o aumento mínimo de um sexto for superior a um ano.

Súmula 243, do STJ: O benefício da suspensão do processo não é aplicável em relação às infrações penais cometidas em concurso material, concurso formal ou continuidade delitiva, quando a pena mínima cominada, seja pelo somatório, seja pela incidência da majorante, ultrapassar o limite de um (01) ano.

Súmula 82, do TJSP: Compete ao Juízo Criminal Comum processar e julgar ação na qual se imputam ao réu crimes cuja soma das penas máximas ultrapassa o limite de 02 (dois) anos previsto no art. 61 da Lei 9.099/95. (grifos nosso)

Não se pode negar, é verdade, que as questões que originaram os verbetes se afloraram em sede processual e para ela foram elaborados. Todavia, não é menos verdade que, de fato, é com fundamento nos acontecimentos apresentados ao Delegado de Polícia que tais celeumas têm origens. Então, por que não pode o Delegado de Polícia utilizar a essência dessas súmulas, quando for o caso, para alinhavar suas decisões, doravante, ao posicionamento dos Tribunais e, como consequência, curvar-se ao princípio da segurança jurídica insculpido no art. 5º, caput, da Constituição Federal?

A nosso ver já é tempo de se firmar a ideia, de uma vez por todas – não porque se deseja, mas porque o é – que enxerga no Delegado de Polícia a figura de mais um intérprete do Direito, assim como os demais operadores, sob pena de se tê-lo como uma autoridade simbólica, da qual é diametralmente oposta.

Oportunas, nesse sentir, são as lições do eminente Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, membro do Conselho Consultivo e de Programas da Escola Paulista da Magistratura, coordenador e coautor da obra: Direito Penal: reinterpretação à luz da Constituição: questões polêmicas, ARMANDO SÉRGIO PRADO DE TOLEDO [03]:

O delegado de Polícia contemporâneo não pode mais ser considerado aquele antigo operador do direito especializado em diferenciar crime de contravenção penal. […]. O delegado de Polícia contemporâneo [...] deve estar em consonância com a evolução da doutrina e da jurisprudência, e não somente com a lei, visto que, como dito, dada a constitucionalização do direito, o ordenamento jurídico é muito mais do que a lei. Portanto, ter a noção exata da finalidade da pena, que nada mais é do que a finalidade do direito penal é fator fundamental para o exercício das funções inerentes ao cargo de delegado de Polícia. […]. Daí a razão pela qual se faz indispensável a todos os operadores do direito penal a análise das teorias das penas, porquanto são elas que revelam o verdadeiro conteúdo e a missão da importante função de punir os membros da sociedade, que, embora dotados de discernimento, não estabelecem comunicação com a norma e, por isso, desestabilizam o sistema com seus comportamentos.

De igual forma são os ensinamentos de NUCCI [04], para quem

Deve a autoridade policial, justamente porque lhe compete a apuração da materialidade das infrações penais e da sua autoria, proceder à classificação dos crimes e contravenções que lhe chegarem ao conhecimento. [...]. Naturalmente, a classificação feita pela autoridade não vincula o Ministério Público, tampouco o juiz, porém a imputação indiciária favorece o conhecimento dos procedimentos adotados pelo condutor do inquérito. Possui, ainda, reflexos na concessão ou não da fiança, no valor estabelecido para esta, no estabelecimento inicial da competência (se foro central ou regional, por exemplo) e até mesmo para a determinação de realização de exame complementar, em caso de lesão corporal grave. (grifos nosso)

A esse respeito – capitulação dos fatos pelo Delegado de Polícia – até mesmo o Supremo Tribunal Federal já se manifestou:

Capitulação do fato. Autoridade policial. Tipificação provisória. Ministério público. Atribuições constitucionais. Ofensa ao art. 129, I, da CF/1988. Inexistência. A definição da competência para julgamento do crime, com base na tipificação provisória conferida ao fato pela autoridade policial, não enseja supressão das atribuições funcionais do Parquet. Fica resguardada a competência do Ministério Público de dar ao fato a capitulação que achar de direito quando ofertar a denúncia. Se a denúncia contemplar crimes diversos do relatado pela autoridade policial, capazes de modificar a competência para o julgamento do processo, poderá o Ministério Público requerer sejam os autos remetidos ao juízo competente. A competência fixada com base na tipificação realizada pela autoridade policial não ofende o art. 129, I, da CF." (RE 497.170), Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 13-5-2008, Primeira Turma, DJE de 6-6-2008.) (grifo nosso)

Bem se vê, portanto, ser dever do Delegado de Polícia analisar todas as circunstâncias que, agregadas às elementares, aumentem ou diminuam, para fins de concessão, ou não, de liberdade provisória com fiança, bem como as demais circunstâncias de fato (art. 312, do CPP) e de direito (art. 313, do CPP) que, se evidentes, impeçam a concessão da liberdade provisória sem fiança.

Essa atividade de interpretação sistemática realizada pelo Delegado de Polícia, embora possa parecer que não, encontra arrimo na Constituição Federal e na legislação infraconstitucional, senão vejamos:

Constituição Federal, art. 53, § 2º: Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. […];

Lei 11.343/2006, art. 53, I: Findos os prazos a que se refere o art. 51 desta Lei, a autoridade de polícia judiciária, remetendo os autos do inquérito ao juízo: I - relatará sumariamente as circunstâncias do fato, justificando as razões que a levaram à classificação do delito, (...); e

Lei 8.069/90 (ECA), art. 174: Comparecendo qualquer dos pais ou responsável, o adolescente será prontamente liberado pela autoridade policial, sob termo de compromisso e responsabilidade de sua apresentação ao representante do Ministério Público, no mesmo dia ou, sendo impossível, no primeiro dia útil imediato, exceto quando, pela gravidade do ato infracional e sua repercussão social, deva o adolescente permanecer sob internação para garantia de sua segurança pessoal ou manutenção da ordem pública. (grifos nossos)

Destarte, a quem nas situações acima mencionadas senão ao Delegado de Polícia é dever de analisar se se encontram presentes, ou não, as hipóteses franqueadoras das concessões legais? A nosso ver não pairam dúvidas, e não poderia ser diferente, pois, do contrário, inúmeras ocorrências criminais ficarão insolúveis quando apresentadas ao Delegado de Polícia, a maior parte delas durante o merecido repouso noturno da maioria dos doutrinares de escol e soi-disants operadores de Direito.

Em verdade, consoante lições de EROS GRAU, a interpretação do direito é interpretação do direito, no seu todo, não de textos isolados, desprendidos do direito. Não se interpreta o direito em tiras, aos pedaços. O trabalho jurídico de construção da norma aplicável a cada caso, prossegue o autor, é trabalho artesanal. Cada solução jurídica, para cada caso, será sempre, renovadamente, uma nova solução. Por isso mesmo – e tal deve ser enfatizado –, a interpretação do direito realiza-se não como mero exercício de leitura de textos normativos, para o quê bastaria ao intérprete ser alfabetizado. [05]

Decerto, e aqui pensamos não deva haver divergência, o Delegado de Polícia não é um mero autômato recebedor de notícias ditas criminais, destituído de consciência, raciocínio e qualquer capacidade valorativa do fato que lhe é apresentado. Ao revés, o policial encarregado da investigação, conforme já se acentuou alhures, é um bacharel em Direito por determinação Constitucional (art. 140, da Constituição paulista).

De igual sorte não se trata de um agente estatal descompromissado com a observância dos direitos e garantias fundamentais, vez que sua atividade, ex vi legis [06] ininterrupta, diuturnamente está imbricada com a liberdade e a propriedade dos usuários. Daí por que assentou o Min. do Superior Tribunal de Justiça, Napoleão Maia Nunes Filho, ao julgar o HC 183.592,

[...] que todas as funções processuais penais são de inescondível relevância, mas [...] a de restringir prematuramente a liberdade da pessoa, a de julgar a lide penal e a de dosimetrar a sanção imposta exigem específico trabalho intelectivo de esmerada elaboração, por não se tratar de atos burocráticos de simples ou fácil exercício, mas sim de atividade complexa, em razão de percutirem altos valores morais e culturais subjetivos a que o sistema de Direito confere incontornável proteção. (grifo nosso)

Por tais razões é que pensamos ser dever do Delegado de Polícia analisar as questões atinentes às causas de aumento e diminuição de pena para fins de concessão da liberdade provisória com fiança, quando admitida, cujo total resultante do aumento ou diminuição deve ser extraído com vistas a identificar a pena máxima. Dessa forma, em se tratando de concurso material, somam-se as penas, conforme determina o art. 69, do Código Penal; se de concurso formal, deve-se analisar a pena máxima com o aumento máximo (1/2), a teor do art. 70, primeira parte, do mesmo Codex; e, em se tratando de tentativa, consoante dicção do art. 14, parágrafo único, do mesmo Estatuto, diminui-se em percentual mínimo (1/3).

À guisa de exemplo, se ao Delegado de Polícia foi apresentada uma ocorrência em que um indivíduo fora capturado transportando veículo produto de crime e arma de fogo de uso permitido, fatalmente amoldará a ocorrência ao tipo penal do art. 180, caput, do Código Penal, cuja pena máxima é de reclusão de 4 anos, e ao art. 14, da Lei 10.826/2.003, cuja pena máxima também é de 4 anos de reclusão. Nesse caso, para fins de concessão ou não da liberdade provisória com fiança, deverá o Delegado de Polícia considerar apenas uma das penas e aumentá-la no grau máximo previsto no art. 70, primeira parte, do mesmo Estatuto repressivo, aferindo um montante de 6 anos de reclusão, hipótese que obsta a aplicação do permissivo legal do art. 322 do Código de Processo Penal.

Da mesma forma deverá proceder ao Delegado de Polícia quando estiver, v. g., diante do fato que subsume ao tipo penal previsto no art. 33, § 2º, c/c art. 40, II, da Lei de Drogas (11.343/2006), pois a pena, nesse caso, calculada chega à quantia de 5 anos de reclusão.

Por outro lado, pelas mesmas razões deverá proceder o Delegado de Polícia quando se deparar com uma causa de diminuição, mas nesse caso agirá de forma inversa, isto é, subtrairá da pena máxima o mínimo estabelecido, a exemplo da tentativa. Suponhamos que o agente é surpreendido tentando obter vantagem ilícita em prejuízo alheio, valendo-se para tanto de meio fraudulento. Apresentado o fato à Unidade Policial o Delegado de Polícia certamente o capitulará como crime previsto no art. 171, caput, cuja pena é de 1 a 5 anos de reclusão, e multa, na forma do art. 14, inciso II, ambos do Código Penal. Se considerada isoladamente a pena não deveria ser concedida liberdade provisória com fiança, eis que a quantia suplanta o limite previsto no art. 322, do Código de Processo Penal (4 anos). Contudo, seguindo o que até o momento defendemos, a pena de 5 anos deve ser diminuída de 1/3 (menor diminuição), consoante parágrafo único, do art. 14, do mesmo Codex, atingindo o patamar de 3 anos e 4 meses de reclusão.

Nessa vereda, terá o Delegado de Polícia, outrossim, de somar as penas ou aumentar uma delas, para fins de representação acerca da prisão preventiva, quando diante de crimes punidos com pena de reclusão que, se considerados isoladamente, não superem o patamar fixado no art. 313, inciso I, do Código de Processo Penal (exempli gratia: quadrilha especializada em receptar veículos), sob pena de a ciência penal, parafraseando NÉLSON HUNGRIA, fazer-se cega à realidade e degradar-se num formalismo vazio, numa placitude obsedante [07].

Desse modo, a nosso ver, deverá assim ser a postura do Delegado de Polícia, notadamente por se tratar do primeiro operador do Direito, por exigência constitucional, a analisar o fato-bruto apresentado no crepitar dos acontecimentos, na Delegacia de Polícia, repartição onde diuturnamente, sem exceção, se ouve o grito das ruas, orumor da multidão e o rangido da tragédia humana.

Mas não se deseja com essas considerações, todavia, se manter enraizado ao sistema processual penal arcaico, mas sim interpretar o Direito, diferentemente da grande maioria, no contexto da atividade de Polícia Judiciária, e conseqüentemente nos mantermos alinhados aos Tribunais Superiores.


Notas

  1. BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Direito Penal. 5. ed., São Paulo: Saraiva, p. 500-501.
  2. Hans-Georg Gadamer apud Eros Grau, in: GRAU, Eros. Ensaio e discurso sobre interpretação/aplicação do Direito. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 116.
  3. Texto da palestra ministrada no Auditório da Academia da Polícia Civil de São Paulo, em 20 de março de 2009, p. 10.
  4. NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado, 9ª Edição, editora RT, p. 79.
  5. GRAU, Eros Roberto, Ob. Cit., notas introdutórias (XI e XVIII).
  6. CDC, art. 22, caput.
  7. HUNGRIA, Nélson: Comentários ao Código Penal. Forense: Rio de Janeiro, 1958.